A tese delinquente da “democracia iliberal”.
Ou: Turquia é exemplo da ditadura islâmica exercida por outros meios, não de
democracia!
Era
fatal que chegássemos a este ponto: os inimigos da democracia não estão apenas
em terras que nos parecem estranhas. Também estão entre nós — aliás, são até
mais perigosos do que os outros.
O
Estadão de hoje publica um texto de Jocelyne Cesari, escrito originalmente para
o Washington Post. Comentei nesta manhã. Esta senhora, tripudiando sobre 58
cadáveres no Egito, produzidos só nos últimos cinco dias, vê com encanto o que
considera avanço da democracia em países islâmicos e lança uma categoria nova:
as “democracias iliberais”. Sim, ela dá de barato, sabem?, que as democracias
muçulmanas serão diferentes, sem os mesmos compromissos que temos com a
igualdade entre os cidadãos ou com a liberdade religiosa.
Chamei
a tese de delinquente. E reitero. Alguns leitores afirmam que desprezei o
trecho em que ela diz ser possível uma “democracia islâmica”, oferecendo a
Turquia como exemplo. Não desprezei, não! Decidi deixar isso para depois. Essa
é outra das estúpidas mistificações que estão em curso.
A
Turquia democrática é a versão dos intelectuais do miolo mole da Turquia mítica
de Glória Perez… Em outras palavras: as duas são fantasias. A de Glória,
claro!, não tem importância nenhuma porque tudo aquilo é brincadeira,
distração, ficção sem importância. Já a conversa de que a Turquia é um modelo
de democracia… Ah, isso tem importância, sim.
Ditadura
com eleições
A
Turquia nunca foi uma democracia e continua a não ser. O que há de
particularmente ruim agora é que a ditadura exercida por outros meios — sob o
controle de um partido religioso — está sendo vista como um grande avanço, uma
grande conquista.
Pesquisem,
meus caros, se tiverem algum especial interesse no assunto, o que ficou
conhecido no país como “Rede Ergenekon”. É a versão turca dos “Processos de
Moscou”, de Stálin. Recep Tayyip Erdogan, o primeiro-ministro, inventou uma
suposta conspiração ultranacionalista e anti-islâmica que pretenderia derrubar
o governo. Estariam envolvidos na tramoia militares (a maior parte dos
acusados), jornalistas, professores, empresários etc. Erdogan prendeu quem bem
quis. Tratou-se de um claro movimento de intimidação. Não há imprensa livre na
Turquia. O governo acusa de conspiração quem bem entender.
O
partido islâmico da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), de Erdogan, aparelhou
todas as instituições do país, muito especialmente a Justiça. A oposição está
intimidada ou presa, acusada de participar da tal conspiração. Sim, existe
pluralidade partidária. A questão é saber se a oposição conseguirá chegar ao
poder…
Erdogan
não é burro. Ao contrário! É muito esperto. Herdou uma Turquia que faz parte da
Otan e a quer integrada à União Europeia. Por isso busca um aparente equilíbrio
entre dois mundos, enquanto vai aniquilando seus adversários internos. No caso
da Primavera Árabe, tomou a decisão mais esperta: fechou com o Ocidente — até
porque o Ocidente estava fechado, ora vejam, com a Irmandade Muçulmana e outros
grupos radicais. Por que agiria de modo diferente? Deu um pé no traseiro de
Bashar Al Assad, mas se aproximou do Irã.
A
Turquia não é modelo de coisa nenhuma. Ao contrário: a sanha com que Erdogan
avançou contra seus adversários, inventando a farsa da “Rede Ergenekon”, só
prova que os islâmicos burros escolhem o terrorismo; os espertos, as eleições.
Burros e espertos querem a mesma coisa: o estado islâmico.
O
país, assim, pode ser um exemplo do que aquela senhora chama de “democracia
iliberal” — que democracia não é. Trata-se apenas da ditadura exercida por
outros meios. Seu texto, reitero, é a evidência da estupidez que tomou conta
dos meios acadêmicos ocidentais.
Turquia
democrática? Que Erdogan ponha fim, por exemplo, ao ensino religioso
obrigatório nas escolas e permita a crítica livre ao Islã. Vamos ver. Não há democracia
onde não há liberdade de consciência e onde jornalistas podem ser encarcerados,
acusados de conspiração, simplesmente porque críticos do governo. Na Turquia de
Erdogan, faz-se o devido processo legal — conduzido por juízes nomeados por um
partido religioso. Entenderam?
Há
quem ache que uma ditadura que conta com o apoio da maioria é mais decente do
que uma ditadura ancorada numa minoria. Como eu estaria morto ou preso tanto em
uma como em outra, nego-me a fazer essa escolha. Continuo a escolher o único
regime que pode abrigar quem sou e penso: a democracia! A democracia LIBERAL! O
“iliberalismo democrático” é uma invenção estúpida de grupos que usaram o
ambiente do livre pensamento para flertar com a sua destruição.
Por Reinaldo Azevedo