segunda-feira, 10 de agosto de 2015

DIGA "CISJORDÂNIA" E PENSE NO ORIENTE MÉDIO COMO UM CRUZADO

Por Miguel Fernandes

É tão ridículo que chega a ser engraçado. Como muita coisa em relação ao Oriente Médio, aliás. Para não usar os topônimos tradicionais "Judéia" e "Samaria", a maioria dos falantes das línguas derivadas do Latim (Francês, Espanhol, Italiano, Português etc) emprega uma nomenclatura que remonta ao pensamento dos cavaleiros cruzados. Isso mesmo! Para ser simpáticos aos árabes, os nossos politicamente corretos abordam uma das regiões mais polêmicas e conflituosas do Oriente Médio com o vocabulário dos cruzados, tão odiados pela propaganda nacionalista árabe e pelo terrorismo islâmico. Duvida?



Você nunca achou esquisito uma região de fala árabe (ou hebraica) ser tranquilamente nomeada, na TV e nos jornais, com uma palavra obviamente latina? "Cisjordânia". "Transjordânia", o antigo nome do país atualmente chamado "Jordânia". Cis, trans, prefixos latinos.
Cis significa "aquém", "deste lado". Trans significa "além, do outro lado". Cisjordânia quer dizer "deste lado do Rio Jordão". Transjordânia, naturalmente, "do outro lado do Rio Jordão". Em nosso continente tivemos algo parecido em relação ao Uruguai, que antes de ganhar independência era uma província brasileira, chamada... Cisplatina, isto é, "do lado de cá do Rio Prata". Porque do lado de lá, todo mundo sabe, são nossos amados hermanos argentinos...
Ora, deste lado ou do outro lado depende, obviamente, do ponto de vista. Eis aí a principal questão nessa história toda: o ponto de vista de quem criou os conceitos de "cisjordânia" e "transjordânia", atualmente na modinha, era necessariamente posicionado de costas para o Mar Mediterrâneo, de costas para a Europa e de frente para o Levante, de frente para o Oriente Médio.
Esse é o ponto de vista do colonizador. Do estrangeiro. Do cruzado.
É por isso que a primeira vez na História que o nome Transjordânia aparece será justamente na boca do cavaleiro cruzado que irá instaurar o Senhorio da Transjordânia, também conhecido como Senhorio de Oultrejordain ("para além do Jordão" em francês antigo), Senhorio de Transjordão, Transjordânia ou Senhorio de Montreal (que foi a primeira capital desse feudo dos estados cruzados na Terra Santa, chamada de Outremer (Ultramar).
Se esses eram os nomes europeus, então quais eram os nomes de quem não estava de costas para o mar? Quais os nomes dos que estavam de costas para a terra, dos que vinham do seu interior, dos que tinham raízes ali?
Filistía (dos filisteus, habitantes de Gaza. É a palavra para "Palestina"). Canaã (cananeus, povos cuja identidade cultural sumiu há milênios, embora os atuais palestinos reivindiquem essa identidade), Habiru (hebreus, já houviu falar neles?). Os habiru nomearam aquilo ali com nomes que você também conhece: Nazaré, Galiléia, Judéia, Samaria etc etc. Esses nomes permaneceram vivos em mapas e na literatura religiosa, que era a principal literatura ao longo de muitos séculos. Para você ter uma ideia, quando a partilha daquele território entre judeus e árabes (ditos palestinos) foi votada pela ONU, em 1947, o nome que as Nações Unidas empregaram para se referir àquela região não foi "Cisjordânia", mas "Judéia e Samaria" (Yehuda e Shomrom, em hebraico. Tem gente que escreve 'Samária', mas é um erro baseado na suposição de que palavra termina em ditongo)
Mas os cruzados não estavam nem um pouco interessados em enxergar naquelas terras um passado judaico. Queriam, antes, afirmar ali a pura cristandade. Nomes o lugar já tinha, e eram bons nomes, nomes do Evangelho, nomes da Bíblia, nomes da vida de Jesus e dos Profetas. Não convinha usá-los, contudo, e a onomástica dos cruzados foi mais um legado que permaneceu adormecido na cultura ocidental até ser novamente empregado quando os europeus venceram o Império Turco, cem anos atrás, e partilharam administrativamente as terras do Oriente Médio antes controladas pelos turcos. O velho conceito de "Transjordânia" e "Cisjordânia" foi novamente aplicado pelos ingleses, que também não queriam encher a bola dos judeus, para dividir a área do Mandato que lhes coube. Do lado de cá do Rio Jordão ("Cis"), poderia haver colonização judaica (compra de terras semidesérticas a preços escorchantes de magnatas árabes de Damasco -- porque a tal "Palestina" árabe nunca passou disto, um subúrbio fedorento e miserável da Síria). Já do lado de lá do Rio Jordão (Trans), a colonização judaica seria interditada.
Tudo muito bom, tudo muito bem, mas foi preciso acomodar uma família importante do Mundo Árabe que perdera privilégios sobre lugares santos na região em que hoje existe a Arábia Saudita. Ganharam assim um emirado -- adivinha onde? Isso mesmo! O Emirado da TRANSJORDÂNIA!!! É a dinastia que até hoje reina muito confortavalmente no Reino Hashmenita da Jordânia. Mas e a terra que seria para divisão entre árabes e judeus...? Ah, que se apertem todos ali naquele pedacinho que seria só para os judeus. Se virem, judeus com uma mão na frente e outra atrás e uns bandos de árabes pobres, pobres, pobres de marré-marré-deci. Que se danem todos eles, são pobres e no Oriente Médio pobre não apita na política. Aliás não é só no Oriente Médio, não.
E assim, no cafundó mais apertado, no quitinete mais ralado, tiveram dois povos que se arrumar com suas diferenças. Um aceitou o pouco que lhe coube e procurou viver no seu quadrado. O outro, inflamado por vizinhos que lhe prometeram uma vitória fácil e muito saque, muito estupro, muita vingança, o outro disse Não! Não aceito partilha, a terra é minha, toda minha, vou cair de pau, vou dar porrada, vou matar todos os inimigos, vou ficar com tudo.
E até hoje continua assim, dizendo não, não, não, é tudo meu, me roubaram, é tudo meu, tudo meu.
A Cisjordânia atual. Judéia,
Samaria, West Bank ou o quê?
É preciso compreender, antes de mais nada, que a onomástica das regiões daquela parte do Oriente Médio sofreu as mesmas vicissitudes por que passaram os povos dali, nas muitas guerras do século passado e do começo deste século -- ou antes, na guerra que se prolonga desde cerca dos anos 1930 até hoje, entre árabes e judeus, no Oriente Médio. Sim, há os persas do Irã, que entraram no bolo a partir de 1979. Sim, há pacíficos judeus em alguns países árabes que não estão em conflito com ninguém, embora vivam sob níveis variáveis de tensão com as maiorias muçulmanas locais, em maior ou menor grau pacíficas. Não me venham com exceções. Estou me referindo ao básico.
Patrocinada pelos ingleses, a ressurreição do nome cruzado Transjordânia, no início da década de 1920, revelou-se um sucesso. Os árabes adoraram, o Emirado da Transjordânia ganhou independência progressiva ao longo das décadas de 1920 e 30 e, já em 1946, se constituía no Reino Hasmenita da Transjordânia -- sempre "do outro lado" do Rio Jordão. Do lado de lá. Porque do lado de cá, os ingleses administravam a área do British Palestine Mandate, o Mandato Britânico da Palestina, a Filastin árabe (o nome diretamente decalcado do hebraico 'Plistin, Filistía, terra dos filisteus bíblicos, os chamados "povos do mar", de Gaza), a Eretz Israel judaica. A Outremer cruzada. A Terra Santa cristã. Várias camadas de nomes sobre um lugar menor do que o menor estado brasileiro, que é o minúsculo Sergipe. Ponha juntas as áreas de uns cinco ou seis municípios de São Paulo e você talvez encha toda a terra habitável daquela região semidesértica.
Em 1947, votada a partilha daquilo (perdoem-me os que amam aquele pedacinho de chão) entre um povo disposto a aceitá-la e outros vários povos dispostos a conquistá-la toda pela força das armas de cinco países (Egito, Síria, Líbano, Iraque e a Transjordânia), a guerra traçou o desenho de linhas de armistício (não fronteiras) estabilizadas até 1967.
Foi na guerra de 1948 que o fofo Reino da Transjordânia, o país árabe de nome tão corretamente cruzado, quem diria! acabou cruzando o Rio Jordão e tomando a planície da Judéia e Samaria e a parte oriental de Jerusalém, junto com a Cidade Velha, o Domo da Rocha, o Monte do Templo, o Muro das Lamentações, os Santo Sepulcro, a coisa toda. Tendo cruzado o Jordão, não dava mais para se chamar TRANSjordânia, não é mesmo? Logo, obedecendo a boa lógica dos cruzados, o Reino Hashmenita da Transjordânia virou Idem Idem da Jordânia e passou a se entender como composto de duas regiões (os cruzados babariam!): a TRANSjordânia e a CISjordânia -- AQUÉM e ALÉM do jordão, mas a partir da Europa, não do Levante.
Entendeu como a Judéia e a Samaria viraram Cisjordânia?
Em 1967, quando o pobre coitado do Rei Hussein, pressionado por Nasser, entrou na aventura do Egito e da Síria contra Israel, a Jordânia tão querida pelos cavaleiros cruzados acabou perdendo a CISjordânia (isto é, a Judéia e a Samaria) para Israel. Judéia e Samaria, pelo plano da partilha da ONU, de 1947, aquele que os palestinos e demais árabes não aceitaram, estariam destinadas aos assentamentos palestinos. Pelo que a ONU decidiu, em 1967-8, Israel deveria abrir mão daquele território diante de condições favoráveis à paz, cessação das hostilidades etc, um clima que jamais se realizou na região, a despeito dos acordos de paz celebrados com o Egito (1979) e com a Jordânia (1994). Os sírios, o Irã, os sauditas, o Iraque, os próprios palestinos no Líbano e na Jordânia jamais permitiram que o clima politico da região se estabilizasse, principalmente em relação a Israel. Não havia, e não há, condição alguma para se abrir mão da Judéia e da Samaria. A prova disso é Gaza. Israel deixou Gaza aos palestinos e hoje aquilo é uma fábrica de problemas militares e de exploração da miséria da população civil pelo descaramento de um grupo terrorista e totalitário, o Hamas. Gaza, contudo, fica bem ao sul de Israel, relativamente distante dos centros mais povoados do país, se é que pode haver "mais distante" num lugar menor que Sergipe. Judéia e Samaria ficam no coração de Israel e quse cortam o país ao meio. Não dá pra arriscar entregar aquilo nas mãos de um povo cujas lideranças não escondem o projeto de uma Palestina árabe, islâmica e unida. Uma Palestina sem Estado Judeu. Aí não rola.


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